Quarta-feira, Dezembro 3, 2025

“AS PEDRAS DA PRAÇA PÚBLICA”

Seguiu-se um silêncio que não era de paz, mas de vergonha.

Por: apostolado
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Naquela tarde calorosa de um reino chamado República das Palavras, ergueu-se uma grande multidão na praça central. No centro do tumulto estava uma jovem chamada Verdade, cercada por homens que seguravam pedras polidas, prontas para o lançamento. A acusação era simples e pesada: diziam que ela havia “traído o povo”, “adulterado princípios”, “virado as costas ao progresso”.

Ninguém sabia ao certo o que ela fizera, mas todos repetiam oque ouviram dos outros, isso já bastava para fazer peso nas mãos e leveza na consciência.

 

Entre os curiosos, surgia de longe um velho andarilho, conhecido apenas como O Sábio das Encruzilhadas. Ele não ocupava cargo nenhum, não tinha partido, não discursava em rádio, não era influenciador. Mas tinha algo raro: silêncio suficiente para ouvir e coragem suficiente para perguntar.

 

Aproximou-se devagar, fitou os homens com pedras e perguntou:

 

— Por que razão quereis apedrejar essa jovem?

 

As respostas explodiram como batuques:

— Porque ela traiu o reino!

— Porque enganou o seu povo!

— Porque não é digna de confiança!

— Porque dizem… porque ouvi… porque alguém me contou!

 

O Sábio passou a mão pela barba e, com uma voz tranquila, pronunciou a frase que fez o vento parar:

— Quem nunca enganou, quem nunca mentiu ao povo, quem nunca desviou promessas… que lance a primeira pedra.

 

Seguiu-se um silêncio que não era de paz, mas de vergonha.

Os homens olharam para suas próprias mãos — mãos que tinham escrito decretos duvidosos, que haviam apertado acordos obscuros, que tinham votado por interesses e omitido responsabilidades. De repente, as pedras pesavam demais.

 

Um a um, recuaram. Alguns esconderam o rosto. Outros fingiram atender uma chamada urgente. Outros, mais sinceros, apenas baixaram a cabeça e partiram.

A jovem Verdade permaneceu de pé, não por inocência absoluta, mas porque ninguém tinha moral para julgá-la com tanta violência.

 

O Sábio aproximou-se dela e disse:

— Filha, onde estão os que queriam te condenar?

 

Ela olhou ao redor.

— Foram-se todos.

 

Ele assentiu:

— Nem eu te condeno. Mas segue e não permitas que a mentira te vista novamente.

 

Vivemos em praças públicas modernas — redes sociais, assembleias, debates, cafés, grupos de WhatsApp — onde todos carregam pedras na mão.

Pedras de indignação instantânea.

Pedras de moralidade improvisada.

Pedras de notícias sem fontes.

Pedras de julgamentos sem memória.

 

É fácil apontar o dedo ao político corrupto.

Difícil é lembrar quantas vezes aceitamos a gasosa, o jeitinho, a pequena mentira, a pequena desonestidade, sementes da mesma árvore que criticamos.

 

É fácil apedrejar o governante que falha.

Difícil é reconhecer que, como cidadãos, muitas vezes falhamos em fiscalizar, participar, ler, votar com consciência, exigir com serenidade e não com fúria.

 

É fácil exigir perfeição pública. Difícil é praticá-la no privado.

 

Nos dias de hoje, a pergunta que não cala é exactamente esta:

 

— Quem, entre nós, realmente pode lançar a primeira pedra contra o estado moral da política?

 

E a política, essa mulher constantemente acusada, continuará na praça — ora culpada, ora inocente — até que o povo decida largar as pedras e assumir o espelho.

 

Porque, no fim, a transformação não começa por atirar pedras, mas largando-as.

 

Por: André Kivuandinga, jornalista e cronista

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