
Naquela tarde calorosa de um reino chamado República das Palavras, ergueu-se uma grande multidão na praça central. No centro do tumulto estava uma jovem chamada Verdade, cercada por homens que seguravam pedras polidas, prontas para o lançamento. A acusação era simples e pesada: diziam que ela havia “traído o povo”, “adulterado princípios”, “virado as costas ao progresso”.
Ninguém sabia ao certo o que ela fizera, mas todos repetiam oque ouviram dos outros, isso já bastava para fazer peso nas mãos e leveza na consciência.
Entre os curiosos, surgia de longe um velho andarilho, conhecido apenas como O Sábio das Encruzilhadas. Ele não ocupava cargo nenhum, não tinha partido, não discursava em rádio, não era influenciador. Mas tinha algo raro: silêncio suficiente para ouvir e coragem suficiente para perguntar.
Aproximou-se devagar, fitou os homens com pedras e perguntou:
— Por que razão quereis apedrejar essa jovem?
As respostas explodiram como batuques:
— Porque ela traiu o reino!
— Porque enganou o seu povo!
— Porque não é digna de confiança!
— Porque dizem… porque ouvi… porque alguém me contou!
O Sábio passou a mão pela barba e, com uma voz tranquila, pronunciou a frase que fez o vento parar:
— Quem nunca enganou, quem nunca mentiu ao povo, quem nunca desviou promessas… que lance a primeira pedra.
Seguiu-se um silêncio que não era de paz, mas de vergonha.
Os homens olharam para suas próprias mãos — mãos que tinham escrito decretos duvidosos, que haviam apertado acordos obscuros, que tinham votado por interesses e omitido responsabilidades. De repente, as pedras pesavam demais.
Um a um, recuaram. Alguns esconderam o rosto. Outros fingiram atender uma chamada urgente. Outros, mais sinceros, apenas baixaram a cabeça e partiram.
A jovem Verdade permaneceu de pé, não por inocência absoluta, mas porque ninguém tinha moral para julgá-la com tanta violência.
O Sábio aproximou-se dela e disse:
— Filha, onde estão os que queriam te condenar?
Ela olhou ao redor.
— Foram-se todos.
Ele assentiu:
— Nem eu te condeno. Mas segue e não permitas que a mentira te vista novamente.
Vivemos em praças públicas modernas — redes sociais, assembleias, debates, cafés, grupos de WhatsApp — onde todos carregam pedras na mão.
Pedras de indignação instantânea.
Pedras de moralidade improvisada.
Pedras de notícias sem fontes.
Pedras de julgamentos sem memória.
É fácil apontar o dedo ao político corrupto.
Difícil é lembrar quantas vezes aceitamos a gasosa, o jeitinho, a pequena mentira, a pequena desonestidade, sementes da mesma árvore que criticamos.
É fácil apedrejar o governante que falha.
Difícil é reconhecer que, como cidadãos, muitas vezes falhamos em fiscalizar, participar, ler, votar com consciência, exigir com serenidade e não com fúria.
É fácil exigir perfeição pública. Difícil é praticá-la no privado.
Nos dias de hoje, a pergunta que não cala é exactamente esta:
— Quem, entre nós, realmente pode lançar a primeira pedra contra o estado moral da política?
E a política, essa mulher constantemente acusada, continuará na praça — ora culpada, ora inocente — até que o povo decida largar as pedras e assumir o espelho.
Porque, no fim, a transformação não começa por atirar pedras, mas largando-as.
Por: André Kivuandinga, jornalista e cronista