Eu tenho uma perspetiva ligeiramente diferente. Eu não descuro a necessidade da reconciliação num país pós-conflito, que é o nosso caso.
Temos experiências várias em todo o lado, desde o Camboja, que mataram um milhão de pessoas, o Ruanda, mataram 800 mil.
Nós temos situações, cada modelo é um modelo, se calhar, onde houve conflitos, depois desenvolveram-se projetos de reconciliação a nível mais espiritual, mais institucional, mas nós aqui em Angola, a visão que eu tenho é que nós já estamos numa fase pós-reconciliação, quer dizer, efetivamente, 23 anos depois em termos, senão a reconciliação vai ser um processo eterno e que é eterno no sentido mais filosófico, os homens estão sempre a reconciliar, por causa das questões da tolerância, da intolerância, das questões familiares, quer dizer, a reconciliação na perspectiva mais filosófica ou teológica, como quiserem, é sempre uma necessidade permanente das sociedades, porque as sociedades estão sempre em conflito, ou é político, ou é social, ou é por aí adiante.
Mas nós em Angola temos um contexto que é um bocado pós-conflito, nós já estamos na situação do conflito político normal, que é as eleições, a partir de um momento, a partir de 2008, que o processo eleitoral foi reatado, portanto é a partir daí que eu faço, de algum modo, um corte, um ano de corte, retomado o processo eleitoral em 2008, a partir desse momento, quer dizer, começaram-se a misturar as duas coisas, mas há uma coisa que neste momento já prevalece, é o conflito político, nós temos um conflito político-partidário, que é próprio da democracia, portanto os conflitos político-partidários são inerentes à democracia em todos os países, onde há democracia, onde há renovação regular de mandatos, há conflito durante aquele tempo ou durante o tempo todo, nós temos um caso que é o que acompanhamos melhor, é o caso português, eles passam todo o ano ali a picarem-se, muitas vezes não querem governar, é o que o ministro fez, o que não fez, quer dizer, nós em Angola temos de facto esse problema, é que como já estamos no conflito puro político, tanto entre adversários, já não são inimigos, e é isso que nós tínhamos que evoluir um bocado, ou ultrapassar, a barreira entre o inimigo do passado e o adversário político do presente, há de facto adversários políticos, as democracias não vivem de beijinho, beijinho, quer dizer, não há democracia multipartidária que viva de beijinho, beijinho, o nosso problema, quanto a mim, é que ultrapassamos um pouco o limite desta diversidade política que é saudável, desta divergência política que é recomendável, porque chega de unanimismos, nós tivemos 14 ou 15 anos de partido único, não há unanimismo, as pessoas desentendem-se naturalmente, seja politicamente, seja religiosamente, e portanto, nós estamos nesta fase.
Sim, mas é tolerável discussões, por exemplo, ao nível do Parlamento, de quem matou, você que matou, mas é tolerável?
Sim, é esse o problema, é esse o problema, que nós não conseguimos esquecer, na questão da diversidade política, não conseguimos pôr para trás a parte da inimizade que tivemos, ou que os dois gerantes tiveram, ou que a sociedade toda teve, para pensarmos só na divergência política, porque os dois principais players da nossa sociedade, o MPLA e a UNITA, têm de facto divergências políticas, são insanáveis, mas como não se consegue resolver a divergência política em democracia matando um, portanto, um ganha, outro perde, até agora só um é que tem ganho, e portanto, nós temos que olhar nessa perspectiva, a perspectiva de que a reconciliação é um dado permanente, nós vivemos já um período de conflitualidade política, que traduz, de algum modo, a inimizade política do passado, mas temos que olhar para ela nesse sentido, como sociedade civil, se quisermos, temos é que permanentemente apelar os protagonistas, as pessoas que nos pedem o voto, porque, no fundo, nós é que resolvemos esse problema, nós é que damos o voto, o nosso voto não pertence a nenhum partido, atenção, o nosso voto é nosso, o voto é dos eleitores, e se nós vamos de 5 em 5 andas de eleições, nós é que temos que decidir a quem vamos entregar o eleito, e as pessoas ainda não perceberam, a maior parte das pessoas não percebe uma coisa, é graças ao nosso voto, que os partidos ganham também dinheiro, porque cada voto vale 3 ou 4 mil coanzas, e aquele bolo que os partidos têm no parlamento é resultante de cada voto, o meu voto vale X, portanto, eu é que tenho, se calhar, que tentar ver ao nível da nossa conflitualidade, como eleitor, porque eu é que sou soberano, eu é que faço parte do povo, o tal povo que eles estão permanentemente a falar, vamos ao soberano, vamos ao soberano, nós é que temos que decidir, se nós percebermos que esta conflitualidade é muito intensa, que é preciso, se calhar, meter mais alguém no barulho, mais um partido com mais força, com menos força, e equilibrar o sistema político, e talvez daí resulte menos inimizada e mais harmonia, então, temos que ser nós os eleitores, nós a sociedade civil, nós os partidos de uma forma geral, a contribuir também para que a nossa conflitualidade diminua e que a reconciliação seja vista apenas nessa perspetiva, na perspetiva normal, portanto, é essa a minha perspectiva, a minha perspectiva de que estamos já na conflitualidade política, pura e simplesmente, o passado continua a marcar muito o debate político, porque faz jeito chamar pela guerra, mas também faz jeito ir buscar coisas do 27 de maio, do 32 de maio, da sexta-feira sangrenta, destas coisas todas, tudo isto faz jeito na hora do debate político, e portanto, é um pouco por aí que eu vejo, no sentido de que, afinal de contas, nós temos possibilidades, nós, enquanto sociedade civil, se calhar, em termos eleitorais, até temos possibilidades de resolver esse problema tirando votos de um, dando a outros, dando a um partido novo, quer dizer, há de facto outras soluções, mas claramente nós temos uma situação aqui que é um misto das duas coisas, a inimizada política do passado, da guerra, mas a diversidade política, porque, efetivamente, nós temos aqui uma situação em que, aqui não há plano A nem B, as pessoas que estão no poder não querem sair do poder, ponto, não há plano B, as pessoas querem chegar ao poder, querem chegar ao ponto, querem chegar ao poder, ponto, também não tem plano B, não querem ficar permanentemente na oposição, é aí que está, se calhar, o nosso conflito, mas é um conflito saudável. Fonte: Rádio Ecclesia / Resenha mensal do dia 29 de Março de 2025