Há bastante tempo que Sua Excelência Reverendíssima Dom Germano Penemote, Núncio Apostólico no Paquistão, concedeu uma entrevista a ANGOP mas ela não foi publicada até ao momento presente, apesar de ter informações úteis ao público. Por essa razão, com a permissão e autorização do autor, publicamos este artigo na sua íntegra.
Ondjiva – O Núncio Apostólico no Paquistão, Dom Germano Penemote, disse, recentemente, na qualidade de cidadão angolano residente no exterior, que o diálogo deve continuar a dominar o espaço político em Angola, para se encontrar consensos na implementação de acções que visam o desenvolvimento socioeconómico do país.
Em entrevista exclusiva à ANGOP, o prelado católico de nacionalidade Angola, em missão diplomática da Santa Sé no Paquistão, disse que os angolanos devem dedicar-se à causa comum, que é o desenvolvimento socioeconómico do país, assumindo-se como patriotas, tendo Angola como elo de união e realização.
Dom Germano Penemote destacou, na entrevista, a captação de investimentos estrangeiros, os projectos estruturantes para o combate à seca no sul do país e as acções realizadas pelo Executivo para a melhoria do sistema nacional da educação e saúde. Destacou, também, as acções em curso visando o combate à corrupção, à diversificação da economia e à necessidade da implementação “urgente” das autarquias locais.
O Núncio Apostólico apelou, igualmente, a necessidade dos partidos políticos evitarem discursos inflamados, sobretudo quando estes tendem a colocar em causa a unidade, a reconciliação e a paz angolana, arduamente alcançadas.
Segue a entrevista na íntegra concedida no dia 27 Maio de 2024
ANGOP – Antes de começarmos a entrevista, gostaríamos de agradecer pela disponibilidade e desejar sucessos na sua missão. Senhor Bispo, 49 anos depois da nossa independência, que abordagem faz sobre a situação socioeconómica do país?
Dom Germano Penemote (GP) – Bom dia, senhores jornalistas da ANGOP. Agradeço-vos pela oportunidade que me concedeis para responder a algumas questões de actualidade no nosso país. Vou, portanto, responder às vossas perguntas na qualidade de cidadão angolano residente no exterior, porque, como diplomata, aqui não é a minha área de missão. Sobre a questão que me foi colocada, em breves palavras, gostaria de realçar que o nosso país está em constante aumento demográfico. A população angolana está a crescer e é preciso termos em conta este dado, para que haja equilíbrio entre a população e o desenvolviemento económico. Para este desiderato, é preciso que reflictamos profundamente para analisar se o país está preparado ou não para enfrentar o aumento demográfico com a economia que temos e o que devemos fazer para se encontrar soluções concretas, ou melhor, para se conjugar os esforços entre o sector económico e o fenómeno demográfico.
ANGOP – Este deve ser um desafio apenas do Estado?
GP – Eu diria que este não é uma tarefa exclusiva do Estado e do Governo, toda a sociedade angolana deve pensar “no quê e como” fazer, porque quando não há equílibrio nos sectores fulcrais da sociedade, corre-se o risco de ter surpresas que não são favoráveis para ninguém.
ANGOP – Nesta senda, que recomendações deixa à população em relação a sua participação no crescimento do país?
GP – Devemos animarmo-nos e seguir em frente, com coragem de aceitar aquilo que somos e temos, e contribuir também com ideias capazes de transformar as nossas comunidades.
ANGOP – Que expectativas tem em relação a diversificação da economia?
GP – Eu penso e espero que o Governo angolano trabalhe em consideração ao crescimento da população e a economia que temos. Angola é um país rico e diversificado nos seus recursos naturais e económicos, que ainda precisam de ser explorados, a fim de beneficiarem as populações. Portanto, devemos saber como canalizar a nossa economia para o bem-estar de todos. Temos muitos produtos, por exemplo no domínio da agricultura, que têm significativamente beneficiado as pessoas, principalemente nas áreas rurais, cuja a exploração deveria ser cada vez mais incentivada e programada, porque constituem a base da dieta alimentar da população.
ANGOP– E como qualifica o investimento estrangeiro em Angola?
GP– Estou em Angola há um mês e meio e vivo fora do país há mais de 20 anos. Por cá tenho estado regularmente e, às vezes, pude constatar os bons efeitos do investimento estrangeiro, nalgumas localidades do país. Este é um dado positivo para nós, porque sozinhos não conseguiremos fazer tudo o que precisamos. O investimento estrangeiro complementa e deve, portanto, continuar a complementar aquilo que temos e somos capazes de fazer por nós mesmos. Além disso, é fundamentalmente necessário investir no capital humano nacional, para sermos autónomos do ponto de vista económico e não só.
ANGOP– Qual é a sua visão em relação a empregabilidade?
GP – O desemprego continua a afectar grande parte da juventude em Angola, daí que defendo a necessidade de se encontrar caminhos para enquadrar os jovens no sector público e privado, após a sua formação.
ANGOP– O que é, de facto, preciso fazer para se melhorar a qualidade do ensino e da educação em Angola?
GP – Todos devemos ter o sentido patriótico e melhorar, antes de tudo, as condições de estudo dos nossos alunos, independentemente da idade e do grau académico. Numa altura como esta, em que o país já vive em paz, não se percebe porque – mesmo aqui dentro da cidade de Ondjiva e concretamente no bairro Okakuluvale – as crianças transportam seus banquinhos para a escola. Por exemplo, esta manhã vi cinco crianças a caminho da escola, a mais velha carregava as cadeiras de todas. Se assim é a vida diária daqueles meninos, o quê é que se espera realmente colher do seu sacrifício?… isto para não falar daquelas crianças que vivem nas aldeias longínquas das escolas, que percorrem longas distâncias, ou daquelas que estudam debaixo das árvores. O mesmo se diga sobre as condições de vida daqueles professores que são destacados nas aldeias, sem residências e outros recursos humanos condígnos. Temos ainda muitos desafios e muito que fazer para melhorarmos a qualidade do ensino e educação no nosso país.
ANGOP – O Estado angolano tem feito nos últimos anos um forte investimento no sector da saúde, será este o caminho certo para a melhoria que se pretende na prestação de serviços?
GP – O Estado, através do Governo, está a fazer a sua parte com empenho para resolver os problemas da sociedade, não só no domínio da saúde mas também no sector da educação e é de enaltecer este facto. Às vezes nos metemos só a criticar, enquanto é também uma virtude saber valorizar o que está sendo feito, porque, às vezes, nem tudo é como nós pensamos. No que diz respeito particularmente ao investimento no sector da saúde, este segue o seu ritmo, que não é errado. O mais importante e necessário é que a qualidade dos serviços prestados nas novas instituições sanitárias seja melhor. Por isso, encorajo o Estado no sentido de continuar a dispor os meios e os instrumentos necessários, às condições humanas, técnicas e materiais, junto das instituições de saúde, para garantir um serviço de qualidade às populações. Ao mesmo tempo, gostaria de apelar à necessidade de se acabar com aqueles casos em que o paciente sai de casa até ao hospital, o médico passa a receita e o dirige à uma farmácia para comprar o medicamento. Acho que as instituições de saúde deveriam ter condições necessárias para acolher as pessoas; isto é, ter o capital humano qualificado, mas também ter os fármacos disponíveis no local. Em suma, podemos dizer que estamos felizes porque não tínhamos hospitais como os temos agora no país. Isto é bom. O que devemos fazer é trabalhar para que os mesmos hospitais tenham condições que a população necessita e que as pessoas vejam os seus problemas resolvidos com êxito, no próprio país.
ANGOP– Como encara a problemática da habitação no país?
GP– Os jovens continuam a reclamar pela habitação (…) é verdade que o país tem centralidades postas à disposição da população, mas parece-me que o que foi feito até agora não basta. Ter a casa própria é um bem maior, sonhado e desejado por muitos habitantes deste país. Porém é necessáro balançar o poder de venda e a capacidade de compra da parte dos cidadãos. Se a maioria dos angolanos vive na pobreza, pode-se construir centralidades aqui e acolá, mas só servirão mais para os que já vivem bem por terem a capacidade de compra.
ANGOP – Mudando de assunto, qual é a visão do Núncio em relação ao combate à corrupção?
GP – O combate à corrupção em Angola é uma lição, uma iniciativa bem-vinda. Na minha opinião, o que se deve fazer é que a mesma iniciativa, o mesmo empenho não deve ser parcial. É necessário um trabalho que envolve todos os que estão implicados em casos de género. Também é necessário que o cidadão seja informado sobre o início e o desfecho de um determinado processo, para se evitar especulações e/ou descredibilidade no processo. Nós estamos fora do país, seguimos o desenvolvimento dos temas de interesse comum e, às vezes, se coloca um caso no Tribunal e, depois, ficamos perdidos porque o desfecho é desconhecido. Ou seja, é preciso que todas etapas do processo sejam divulgadas porque são casos que interessam a todos os angolanos.
ANGOP – Que ganhos aponta para o país desde o alcance da paz?
GP – Tivemos ganhos, sobretudo da livre circulação de pessoas e bens. Até 2002 era quase impossível transitar, por exemplo, de Luanda para Ondjiva, de carro, assim como era impossível ir aos campos cultivar, em muitas partes do país. O segundo ganho que poderia mencionar é a paulatina consolidação da nossa democracia. Desde 2002 até hoje tivemos eleições democráticas e livres, dentro da ordem estabelecida. O terceiro é implementação de projectos atinentes à construção de escolas, hospitais, igrejas, pontes, barragens e outras estruturas de interesse comum na sociedade. O quarto ganho é a liberdade de expressão, pois, os angolanos de hoje não são os de 22 anos atrás, hoje falamos com mais liberdade e faço voto para que essas iniciativas e liberdades se consolidem. Gostaria, no entanto, de apelar a sociedade em geral, e os jovens em particular, no sentido de preservar estes ganhos. Tudo isto depende de cada um de nós; as novas gerações não sabem o quanto difícil se fez no passado para se alcançar a paz. Por exemplo, os jovens angolanos, que têm 22 anos de idade, pensam que sempre fomos assim… e digo isto porque, parece-me, que estamos a esquecer aquilo que fomos há duas décadas. Nas nossas escolas e no curriculum dos estudos deve constar como condição sine qua non o estudo da história nacional, para que a juventude saiba que o passado não foi “mar de rosas” e que continue a preservar a paz. Se conhecermos a nossa história, também conheceremos os melhores caminhos para preservar a paz.
ANGOP – Como olha para a postura dos partidos políticos?
GP– Aos partidos políticos gostaria de apelar ao espírito de tolerância e aceitação mútua porque todos somos irmãos e angolanos. Estamos em democracia e precisamos de crescer juntos. Vemos que há quem nunca cedeu o poder e quem se esforça para lá chegar, assim acontece em democracia. Entretanto, cada um tem a sua responsabilidade no reflexo da sociedade e do país. Os angolanos devemos ser cada vez mais honestos e sinceros nos discursos. Necessitamos de ter como objectivo o bem da pátria e do povo, em vez dos interesses pessoais e partidários. Por isso, os partidos políticas devem coincidir na causa comum, que é o desenvolvimento do país, ou melhor, devem estar ao serviço da nação, porque é aos mesmos partidos que os cidadãos confiam o destino das suas aspirações.
ANGOP– Angola celebra em Novembro próximo, 49 anos de Independência, há avanços?
GP – Os 49 anos de independência nacional não são poucos; e aqui devemos fazer uma leitura retrospectiva da nossa caminhada e da nossa história: o que fizemos de bom desde 1975 até hoje e o que é necessário fazer ainda, para se dignificar o povo angolano. Quarenta e nove anos desde que ficamos independentes de Portugal são muitos. Por isso somos suficiente e multisectorialmente maduros para trabalhar e desenvolver o nosso país. Estamos a falar de uma comemoração que vai merecer o interesse de todos os angolanos de boa vontade. E vai ser também a preparação do jubileu dos 50 anos da nossa independência. Isto requere, desde já, que todos estejamos de mãos dadas para uma boa comemoração, em acções de graças a Deus que quis que todos os homens fossem livres e felizes neste mundo.
ANGOP – Quais são as suas expectativas acerca da implementação das autarquias em Angola?
GP – Nós falamos com muita euforia sobre as autarquias. Já há muitos anos que estamos a ouvir falar desse tema. Ouviu-se inclusive disputas sobre quem foi o mentor das mesmas autarquias. Mas não é isto o que nos interessa. O que interessa é a decentralização dos poderes e a conexão dos mesmos ao poder local e às instituições locais, a fim de que o povo possa ser o arquitécto dos próprios projectos de desenvolvimento e digno consumidor do fruto do esforço pessoal. O que nos interessa é que haja consensos e se comece já a implementar as autarquias no país.
ANGOP – O Executivo angolano fez um grande investimento em projectos estruturantes de combate à seca no sul de Angola, como é o Canal do Cafu. Como encara essa iniciativa?
GP – Como cidadão angolano, acompanho o desenvolvimento do nosso país e, no que diz respeito particularmente ao projecto estruturante do Canal do Cafu, digo que foi uma iniciativa boa para dar solução ao problema da seca no sul do país, concretamente no Kunene. Já visitei o Canal do Cafu cinco vezes, em lugares diferentes. A última vez que por lá estive, foi no dia 21 de Maio de 2024, quando fui ver a extremidade do canal que ao tocar o território do município de Onamakunde, termina na Chana de Ongode ya Mupolo e mais nada… dá para visitá-lo, constatar e reflectir. Em si mesmo, o canal é bem-vindo, o que me preocupa é a forma como foi construído. No Kunene, mesmo no tempo colonial, na zona onde passa o Canal do Cafu havia farmas (de Marcelino/Haukongo) que tinham a água canalizada e encaminhada em tubos subterrâneos para as manadas de gado que abundavam na área. No entanto, o Canal do Cafu apresenta alguns défices que, apesar de tudo, podem ser corrigidos: a) concretamente nas chanas e omilola onde as águas pluviais escoam segundo a natureza, o canal não deveria ser aberto, mas subterrâneo em tubagens gigantes; b) seria bom que se implementasse um sistema de distribuição de água para as aldeias, em tubos subterrânos medianos, a partir das 30 ou mais chimpacas existentes ao longo do canal, porque só assim que se resolveria grande parte do problema da seca nos municípios de Ombadja e Oukwanyama; na verdade, o canal está cheio de àgua, mas as pessoas nas aldeias circunvizinhas continuam carentes do líquido precioso; c) o Canal do Cafu não tem pontes e as pequenas e raras travessias que foram colocadas não favorecem a circulação de pessoas e bens (animais), numa província onde a criação de gado é um dos principais recursos económicos de sobrevivência; d) como último dado, é necessário que haja um muro de protecção apropriada, não só das chimpacas mas também do próprio canal a superfície, para se evitar danos e vítimas. A mesma protecção impediria igualmente a invasão e a destruição do canal pelas correntes de àguas pluviais.
ANGOP – Apesar destas observações, acha que o canal está a beneficiar a população?
GP – Sem dúvida alguma, o canal está a beneficiar as pessoas e os animais das zonas por onde passa. Aí nota-se também a prática da agricultura, mas dever-se-ia fazer mais para o seu incentivo e melhoramento, sem, porém, expulsar as pessoas das suas terras.
ANGOP – Vai para uma missão num país com uma cultura totalmente diferente da de Angola. Como encara este desafio?
GP – Já estou a trabalhar no Paquistão desde o mês de Setembro de 2023, um grande país asiático, que tem uma cultura tradicional e uma religião diferentes das nossas; um país com número elevado da população e outros aspectos tipicamente característicos. Quando nós partimos da nossa terra para um mundo novo, devemos sempre estar decididos e, apesar das inúmeras limitações da primeira hora, devemos também saber valorizar e transmitir as nossas virtudes. Como sabeis, o Paquistão é um dos países mais populosos do mundo, tem cerca de 235,8 milhões de habitantes, imaginem só quantas vezes seria a população de Angola. A maioria da população é muçulmana. Os cristãos são cerca de 1,8% da população, sendo 0’7% católicos. Dificuldades não faltam, porém, nota-se a dedicação de pessoas de boa vontade, para que se possa viver dentro da ordem e normalidade. As relações diplomáticas entre a Santa Sé, que eu represento, e o Estado Islâmico do Paquistão são boas.
ANGOP – Já esteve com a comunidade angolana no Paquistão?
GP- Desde que cheguei naquele país não encontrei nenhum angolano, aliás, nunca ouvi nem sei se existe uma comunidade angolana. Os africanos que aparecem mais, mesmo entre os diplomatas são argelinos, egípcios, etiópes, malawianos, maroquinos, maurícios, nigerianos, quenianos, somalís, sul-africanos, sudaneses, tunisinos, zimbabueanos, entre outros. Alguns deles também participam na missa dominical. E, repito, até agora não encontrei nenhum angolano no Paquistão.
ANGOP– Gostaríamos mais uma vez de agradecer pela entrevista e desejar-vos muitos sucessos. Antes de terminar a entrevista, tem alguma mensagem para os angolanos?
GP- Gostaria de deixar uma mensagem de esperança para o nosso povo: devemos dedicar-nos à causa comum, que é o desenvolvimento do nosso país, primando pela educação da juventude, melhorando as condições que oferecemos à população e trabalharmos todos juntos e com amor, porque Angola é a nossa pátria e pertence-nos totalmente.
Quem é Dom Germano?
Dom Germano Penemote, nasceu em Ondobe, comuna da Môngua na província província do Kunene (Angola), nos finais do ano 1969. Foi ordenado sacerdote em 1998, na missão de Omupanda, a 10 quilómetros da cidade de Ondjiva. É graduado pela Pontifícia Universidade Lateranense, em Roma, em “Utroque Iure” (Direito Canónico e Civil), em 2003. Entrou no serviço diplomático da Santa Sé em 2003 e trabalhou nas Nunciaturas Apostólicas no Benim, Uruguai, Eslováquia, Tailândia, Hungria, Peru e Roménia. Em 2023 foi nomeado pelo Papa Francisco Núncio Apostólico no Paquistão e ordenado Bispo em Agosto do mesmo ano, em Ondjiva, por Sua Eminência o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado da Sua Santidade. Ama Angola, conhece, sente e vive os problemas do seu povo e desta sua pátria de origem. É escritor e autor de muitos livros, inclusive “O Pântano onde eu nasci” (2015/16), uma obra exclusiva de 768 páginas sobre a seca e as cheias que afectam periodicamente o sul de Angola e o norte da Namíbia, com propóstas de valor. É, por último, fluente em espanhol, francês, inglês, italiano, oshikwanyama e português. Fonte: ANGOP entrevista do dia 27 de Maio de 2024